casas para as pessoas não para start ups!


As casas ocupam-se com pessoas, não com ideias.

A Câmara Municipal de Lisboa lançou o desafio a jovens universitários com um “perfil tecnológico”, de dar uma nova vida às casas vazias espalhadas pela cidade. De acordo com a divulgação do evento Hackathome, “Lisboa tem mais de 48 000 casas vazias, que não estão a servir a sua função habitacional. Neste contexto, a Câmara, em colaboração com a Start up Lisboa, quer apelar ao conhecimento e dinamismo do ecossistema empreendedor para definir políticas públicas apoiadas na cocriação com os cidadãos.” Esta iniciativa, que está a decorrer no Hub Criativo do Beato (uma das áreas mais afetadas pelos processos de gentrificação e especulação imobiliária da cidade de Lisboa), pretende juntar equipas de jovens universitários, que durante o fim-de-semana de 28 e 29 de maio terão 24 horas para apresentar uma proposta “tecnológica”, “empreendedora” e “inovadora”, capaz de resolver a crise da habitação. O objetivo é “criar uma solução com base tecnológica que permita ligar a oferta e a procura de forma sustentável, reduzindo a burocracia do processo.” Estão previstos três prémios para as equipas vencedoras, num total de 10 000 euros.

Enquanto a CML aguarda que universitários, com o auxílio dos seus mentores resolvam, em 24 horas, durante o fim-de-semana e sem garantia de remuneração, a crise da habitação que tanto ajudou a promover, continuam os despejos sem alternativa de habitação. Estas “desocupações”, como o Estado gosta de chamar, vêm no seguimento de uma autêntica declaração de guerra aos mais vulneráveis, e não acontecem só em Lisboa, nos bairros Padre Cruz (em dezembro de 2021 e maio de 2022), Carlos Botelho (abril de 2022) e Quinta do Loureiro (maio de 2022), entre outros. Também no Porto e em Aveiro têm sido relatados recentemente casos de despejos de famílias com crianças, no Bairro do Bom Pastor, e na Quinta do Griné.

Ao fim de meses desta epidemia de despejos, que tende a continuar (a Gebalis, uma das empresas parceiras do Hackathome, prometeu “desocupar” 800 habitações em Lisboa), as soluções continuam pendentes (se é que existem). Nos últimos meses, como consequência das ações de despejo levadas a cabo pela CML e Gebalis, não só temos assistido a um aumento das casas municipais vazias, como um aumento do número de famílias em situação de sem-abrigo ou em precariedade habitacional. Porém, no comunicado oficial da CML a propósito do Hackathome e do problema das casas vazias, Filipa Roseta, vereadora da habitação, assume que “a colocação à disposição dos munícipes destas casas é uma missão urgente”, sem especificar quantas das 48 000 casas vazias são património municipal que tem sido deixado ao abandono (estima-se que ronde as 2000 casas).

Então se é urgente (tão urgente que é necessário organizar uma maratona), e se a câmara não encontra soluções para o problema do património vazio a curto-prazo, porque continua a despejar com violência policial? Quem são os “munícipes” aos quais Filipa Roseta quer dar resposta? Será a câmara a assumir que, na realidade, pretende aumentar o número de património municipal ao abandono, enquanto continua a beneficiar a especulação imobiliária e a criar propostas e programas habitacionais que excluem os mais vulneráveis?

Nos últimos anos os movimentos sociais ligados à habitação e direito à cidade têm apresentado soluções (de graça!) realmente sustentáveis e inclusivas, e que não requerem maratonas não-remuneradas, mentores da Microsoft nem conhecimentos de bitcoin. São alguns exemplos a expropriação de imóveis devolutos, o estabelecimento de um teto máximo de renda, adaptado aos rendimentos das pessoas, o fim dos despejos sem alternativa de habitação, o fim dos vistos gold ou o aumento da habitação pública em Portugal.

A crise da habitação dos últimos anos não é resultado da falta de criatividade ou espírito empreendedor, nem do excessivo envolvimento do Estado. Como temos vindo a constatar, quando o assunto é habitação, o Estado só se envolve quando se trata de despejar pessoas que dão realmente vida a algumas das 48 000 casas vazias, seja por não conseguirem pagar rendas no mercado de arrendamento privado, não cumprirem os critérios pouco claros que permitem aceder a uma habitação social, ou não poderem beneficiar dos programas de rendas acessíveis e afins, direcionados para a classe média. Quando se trata de garantir a igualdade no acesso a habitação digna e que todas as pessoas possam pagar, o Estado-empresa conta com a boa-vontade dos privados, que continuam a enriquecer com a crise da habitação. Note-se que as rendas voltaram a aumentar.

Eventos como o Hackathome pretendem passar a mensagem que, a verdadeira solução para resolver a crise da habitação passa por um envolvimento ainda menor do Estado no que toca à habitação, uma autonomia que só é possível através da tecnologia e inovação.

No entanto, há muito que o Estado deixou de estar ao serviço das pessoas, mas sim do capital. Se o objetivo último é a autonomia, porque é que temos vindo a assistir a um agravamento da violência policial e criminalização de quem ocupa? Se a “excessiva burocratização” é um problema, porque é que a CML continua a dificultar o processo de regularização, pedido pelas pessoas que ocupam casas municipais deixadas ao abandono? Numa cidade onde de tornou impossível habitar, o que são exatamente “ocupações ilegais”? Quem é que as soluções tecnológicas e o empreendedorismo estão realmente a servir?